Garotaria

Frédéric Bastiat

Não há nada comparável à estação de águas dos Pirineus. Lá se encontram homens de todo o país, gente experiente que já viu muito, reteve muitas coisas, e está pronta a muito contar. Encontram-se lá também, o que é menos precioso, e em grande número, outros homens dispostos a, com razão, muito escutar. Já há vários dias, nós, verdadeiros doentes, doentes sérios, como se diz em nossos dias (o que não nos impede de ser alegres), formávamos um grupo em volta de um fidalgo valenciano, que visitou longa e detalhadamente a ilha de Baratária e que nos contava coisas maravilhosas vistas por lá. Sabe-se que essa ilha tem como legislador o grande Sancho Pança, o qual acreditou dever desvencilhar-se, em suas instituições, dos legados clássicos de Minos, Licurgo, Sólon, Numa e Platão. Em Baratária, o princípio básico de governo é deixar os governados julgarem e decidirem por eles mesmos, em todos os assuntos, e nada exigir deles a não ser o respeito à justiça. O governo não promete nada também. Ele não se encarrega de nada e só responde pela segurança da população.

Em outra oportunidade, eu lhes falarei sobre os efeitos desse sistema. Por hoje, vou-me limitar a transcrever aqui duas cartas que foram trocadas entre Dom Quixote e Sancho, durante o reinado do célebre batalhador manchego, e que estão preciosamente conservadas na biblioteca de Baratária.

Infelizmente, o Cavaleiro da Triste Figura e também seu escudeiro não tomaram o cuidado de datar a correspondência deles. Supõe-se que essa só tenha ocorrido vários meses após Sancho ter tomado posse da ilha. Isso se reconhece pelo estilo, que trai, em Dom Quixote, a perda do pouco de bom senso que lhe restava e, em Sancho, uma menor dose de amável ingenuidade. Não importa como seja, mas tudo o que vem desses dois heróis é por demais precioso para não ser conservado.

DOM QUIXOTE A SANCHO

Amigo Sancho, não posso me referir ao quanto é difícil governar os homens, sem sentir algum remorso por te ter proposto governar a ilha de Baratária, missão para a qual tua cabeça e teu coração não estavam talvez o bastante preparados.

Por isso, tomo a liberdade de te apresentar, daqui por diante, frequentes conselhos, que tu seguirás, espero, com a docilidade que é imposta aos escudeiros pelas leis da cavalaria.

Como deves agora deplorar a grosseira existência que levaste até o dia em que te associaste, com teu burro, às minhas gloriosas campanhas, aos meus nobres caminhos traçados pelo destino! Os grandes feitos que testemunhaste e nos quais não deixaste de tomar parte arrancaram certamente teu espírito das preocupações vulgares da tua aldeia. Mas terá ele tido tempo de se elevar à altura necessária que deve alcançar o espírito de um legislador?

Receio, amigo Sancho, que, chamado a representar no palco do mundo o papel de um Minos, de um Licurgo, de um Sólon, de um Numa, tu não estejas ainda suficientemente identificado com o pensamento e os objetivos desses grandes homens. Como eles, tu és mais que um príncipe, tu és legislador. E tu sabes o que é um legislador?

“Aquele que ousa legislar para um povo deve-se sentir em condições de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que é, por si só, um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual esse indivíduo deve receber, de algum modo, sua vida e seu ser. Deve ainda poder alterar a constituição do homem para reforçá-la, substituir a existência física e independente que recebemos da natureza por uma existência parcial e moral. É preciso, resumindo, que ele tire do homem suas próprias forças para lhe dar outras que lhe sejam alheias e que ele não possa usar senão auxiliado por outrem.”1

Amigo Sancho, tens que ser primeiro o inventor, depois o mecânico de uma máquina, da qual o povo de Baratária será o material e as molas. Não te esqueças de que, nessa máquina, tudo deve combinar, não para a glória do inventor ou a felicidade do mecânico, mas para a felicidade e a glória da própria máquina.

A primeira dificuldade que tu vais encontrar será a de fazer tuas leis serem aceitas. Não seria mal se pudesses persuadir aos baratarianos que tu tens ligação secreta com alguma deusa. Tu sancionarias tuas leis em dia de tempestade, em meio aos trovões e relâmpagos. Elas seriam, assim, impressas no espírito deles com o sentimento de um salutar terror. Teu código não seria simplesmente um código, mas uma religião. Violar a lei seria cometer um sacrilégio, e faria o violador incorrer não somente em castigos humanos, mas também na ira dos deuses. É dessa maneira que darás estabilidade à tua cidade e forçarás os cidadãos a suportarem docilmente o jugo da felicidade pública.

Tal impostura seria, é bem verdade, odiosa em qualquer outra pessoa, mas é permitida a um legislador. Todos fizeram uso dela, de Licurgo a Maomé, e, em nossos dias, se tu leres os artigos dos jornalistas que aspiram a refazer a sociedade, observarás neles um certo tom de misticismo, que prova não se aborrecerem eles por passar por inspirados e profetas. Os que recorrem a tais superstições são mais desculpáveis, têm mérito, pois honram os deuses por sua sabedoria.

Terás depois que resolver a seguinte questão importante: vais estabelecer ou não a escravidão?

Há, quanto a esse assunto, muitos prós e muitos contras.

Se, como nós, pessoas esclarecidas, tivesses passado toda tua juventude entre os gregos e os romanos, saberias que a virtude é incompatível com o trabalho; que só o mister das armas é nobre, que só a guerra é grande, que nossas mãos não saberiam se ocupar dignamente senão com as artes que servem à dominação ou à destruição; e que aqueles que nos fazem existir são essencialmente baixos, vis e servis.

Deduz-se daí que, para fazer florescer a virtude na tua ilha, deves banir de lá o trabalho. No entanto, banir o trabalho seria banir a vida. Eis como poderias resolver tal dificuldade: repartirias os baratarianos em duas classes. Uns (em torno de 95%) se dedicariam, com o nome de escravos, aos trabalhos servis. Seriam marcados na testa para serem reconhecidos, e seriam acorrentados pelo pescoço para não provocarem rebeliões. Os outros viveriam, então, nobremente. Exerceriam a luta, o pugilismo, se aperfeiçoariam na arte de matar, ou seja: sua ocupação seria a virtude. É assim que realizarás a liberdade.

O quê! me dirás, a liberdade não pode florescer senão com a ajuda da servidão? — Talvez.

Medite sobre estas palavras, amigo Sancho, e responda-me sem demora.

RESPOSTA DE SANCHO

Mandei meu secretário ler-me sua carta e, embora eu compreenda muito pouca coisa do que ela diz, apresso-me em respondê-la. Para dizer a verdade, não percebo que tenha aprendido algo de muito útil para o meu governo durante o curso de nossas aventuras. E acontece ainda, estranhamente, que a maior parte de seus discursos se foram da minha cabeça. Já as sentenças de nosso cura, os provérbios de Carasco e, sobretudo, as máximas de Tereza Pança são para mim, ainda hoje, de grande auxílio. Quanto às campanhas das quais fala e nas quais tem a bondade de dizer que tive participação, não me lembro delas também e não posso considerar campanhas as suas singulares lutas contra moinhos de vento ou carneiros, pois delas só fui espectador inativo. Mas, ao contrário, lembro-me muito bem das pauladas que me quebraram os ossos, no bosque onde combatemos vinte almocreves.

Enfim, eis-me aqui, como o senhor diz, legislador, príncipe e governador.

Registro inicialmente que, segundo seu ponto de vista, a sociedade baratariana deve ser uma máquina da qual os baratarianos serão os materiais e eu o inventor, o executor, o mecânico. Mandei ler três vezes essa passagem de sua honrosa carta, sem jamais poder compreender a primeira palavra.

Os baratarianos, que o senhor talvez nunca viu, são feitos como o senhor e eu, ou aproximadamente, pois não há nenhum deles que atinja a sua magreza ou a minha rotundidade. Tirando isso, eles se parecem muito conosco. Têm olhos para ver, ouvidos para ouvir, e a cabeça deles, se não me engano, contém um cérebro. Eles se movem, pensam, falam e parecem todos muito ocupados com as providências que têm de tomar para serem felizes. A bem dizer, não se ocupam de outra coisa. E não entendo por que o senhor os tomou por materiais.

Observei também que os baratarianos têm outro traço de semelhança com os habitantes de minha aldeia: é pelo fato de cada um deles ser tão ávido de felicidade que chegam a buscá-la às vezes às custas de outrem. Durante várias semanas meu secretário só fez ler-me petições surpreendentes a esse respeito. Todas, sejam elas provenientes de um só indivíduo ou da comunidade, podem se resumir nestas duas sentenças: “— Não nos peça dinheiro, dê-nos dinheiro”. Isso me fez refletir muito.

Mandei buscar meu ministro da hacienda e lhe perguntei se conhecia um meio de dar sempre dinheiro aos baratarianos sem jamais ter de pedir-lhes dinheiro. O ministro me afirmou que esse meio lhe era desconhecido. Perguntei-lhe se não poderia ao menos dar aos baratarianos um pouco mais de dinheiro do que a quantia que eu lhes pediria.

Ele me respondeu que era exatamente o contrário; e que era totalmente impossível dar dez aos meus súditos sem lhes tomar pelo menos doze, por causa das despesas.

Então eu desenvolvi o seguinte raciocínio: se eu der a cada baratariano o que lhe tomar, excetuados os gastos com despesas, a operação é ridícula. Se eu der mais a uns, é porque darei menos a outros, e a operação será injusta.

Considerando todo o benefício da medida, decidi agir de outra maneira, segundo o que me pareceu mais justo e razoável. Convoquei uma grande assembleia de baratarianos e lhes falei assim:

“Baratarianos!

Examinando como vocês e eu somos feitos, achei que havia muita semelhança entre nós. Concluí, então, que não me era possível, assim como não o seria a qualquer um de vocês, fazer a felicidade de todos. E venho lhes dizer que não aceito a ideia de ser eu o responsável por isso. Vocês não têm braços, pernas e a vontade para coordená-los? Façam, pois, a felicidade de vocês por vocês mesmos.

Deus lhes deu terras: cultivem-nas e retirem delas os produtos necessários. Troquem-nos uns com os outros. Que aqueles que trabalham a terra, os que tecem, os que ensinam, advogam, curam, que cada um trabalhe segundo seu desejo e gosto.

Quanto a mim, meu dever é garantir a cada um as duas coisas seguintes:a liberdade de ação e a livre disposição dos frutos de seu trabalho.

Eu me dedicarei constantemente a reprimir, onde ela se manifestar, a funesta inclinação dos homens a se despojarem mutuamente Darei a todos segurança total. Encarreguem-se do resto.

Não é um absurdo que vocês me peçam outra coisa além disso? Que significam esses montes de petições? Se eu lhes desse crédito, todo mundo roubaria todo mundo em Baratária. E isso por meu intermédio!… Creio, ao contrário, ter por missão impedir que um roube o outro.

Baratarianos, há bastante diferença entre esses dois sistemas. Se eu tiver de ser, segundo vocês, o instrumento através do qual todo, mundo rouba todo mundo, será como se eu dissesse que todas as propriedades de vocês me pertencem e que eu posso dispor delas tanto quanto da liberdade de vocês. Vocês não seriam mais homens, porém, animais.

Se eu tiver de ser o instrumento através do qual não haja ninguém roubado, minha missão será tanto mais restrita quanto mais vocês forem justos. Então, não vou pedir a vocês mais do que um pequeno imposto, e vocês só poderão culpar a vocês mesmos por tudo o que lhes acontecer. Em todo caso e em toda justiça, não é a mim que vocês deverão culpar. Minha responsabilidade será bem reduzida e minha estabilidade melhor assegurada.

Baratarianos, eis, portanto, o que vamos convencionar:

Façam como bem entenderem. Levantem-se tarde ou cedo, trabalhem ou descansem, façam banquetes ou jejum, gastem ou poupem, ajam isoladamente ou em comum, entendam-se entre si ou não se entendam. Eu os tenho a todos por adultos e os respeito demais para intervir nessas coisas. É claro que elas não me são indiferentes. Eu prefiro vê-los ativos a preguiçosos, econômicos a pródigos, sóbrios a intemperados, caridosos a impiedosos, mas não tenho o direito e, em todo o caso, não tenho o poder de lançá-los no mundo que me convém. Confio em vocês e na lei da responsabilidade, à qual Deus submeteu o homem.

Tudo o que farei da força pública a mim confiada é aplicá-la para que cada um se contente com a sua liberdade, sua propriedade, e seja contido pelos limites da justiça.”

Eis o que eu disse, meu caro mestre. Fazendo-lhe conhecer assim minhas palavras, feitos e gestos, desejo saber o que o senhor pensa deles, antes de responder ao resto de sua carta. Tenho aliás, necessidade de descansar, pois ainda não tinha ditado nada tão longo.


Sobre o autor

Claude Frédéric Bastiat (Baiona, 30 de junho de 1801 — Roma, 24 de dezembro de 1850) foi um economista e jornalista francês. A maior parte de sua obra foi escrita durante os anos que antecederam e que imediatamente sucederam a Revolução de 1848. Nessa época, eram grandes as discussões em torno do socialismo, para o qual a França pendia fortemente. Como deputado, teve a oportunidade de se opor vivamente às ideias socialistas, fazendo-o através de seus escritos, vazados em estilo cheio de humor e sátira. Mais em Wikipédia

  1. Tínhamos alguma dificuldade em compreender como Dom Quixote tinha podido citar Rousseau e nos veio naturalmente ao pensamento que teria sido Rousseau quem tomara emprestado a Dom Quixote tais ideias. Mas, considerando-se que a antiguidade é o único assunto de estudo e de admiração dos modernos, preferimos acreditar em uma simples coincidência que não tem nada de surpreendente. 

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